Neil Gaiman é considerado um dos dez maiores escritores pós-modernos vivos. Tem mais de vinte livros publicados e já foi agraciado com inúmeros prêmios, incluindo o Hugo, o Bram Stoker e a Newbery Medal. Iniciou a carreira literária com a aclamada série em quadrinhos Sandman e, depois, seguiu para a ficção, publicando obras memoráveis como Deuses Americanos. Nasceu em Hamsphire, Inglaterra, e hoje mora nos Estados Unidos. Pela Intrínseca publicou também O Oceano no Fim do Caminho, Faça Boa Arte, A verdade é uma caverna nas Montanhas Negras, João e Maria, Os filhos de Anansi e Lugar Nenhum. Pode ser encontrado no site www.neilgaiman.com.
Ao longo de toda a existência humana, refletimos sobre as questões fundamentais da vida, da morte, da natureza e de nossos relacionamentos. Surpreendentemente, em todo o globo terrestre e durante um espaço de tempo extremamente longo, nossas respostas para essas indagações têm sido idênticas: a criação de mitos. A mitologia nórdica, por exemplo, que floresceu antes da cristianização da Escandinávia, dizia respeito às histórias dos deuses pagãos, heróis e reis contadas na Escandinávia, no norte da Alemanha e na Islândia. Embora não fizessem registros escritos até o século XI — um processo que se estendeu até o século XVIII —, as histórias já existiam desde muitos séculos antes dessa época.
Desde sempre afeiçoado pela herança cultural escandinava, Neil Gaiman, então, se propôs a registrar em uma coletânea as mais célebres histórias da mitologia nórdica — mostrando que seu uso na atualidade e toda a sua iconografia ainda conseguem surpreender o leitor. São 15 contos que partem da origem do universo até o fim do mundo, mostrando a relação, permeada pelos mais diversos conflitos, e a jornada de personagens como Odin, o mais poderoso dos deuses, Thor, o deus do trovão, e Loki, o deus da trapaça.
Logo em sua apresentação, Gaiman tece uma espécie de filosofia da composição para Mitologia Nórdica, ressaltando a dificuldade que teve em escolher um universo favorito de lendas e mistos, a afeição nata pelas histórias escandinavas, as inspirações para escrever a antologia e comentando sobre a dicotomia existente entre relatos orais e escritos, o que fez como que muitas narrativas, como a de Vor, a deusa da sabedoria e Sjofn, uma deusa do amor, fossem perdidas, enterradas e esquecidas. O autor, por fim, alerta-nos sobre a originalidade de sua coletânea, que não se atreveu a revisitar narrativas de contadores de mitos nórdicos e sugere que nos apropriemos das histórias presente em Mitologia Nórdica — afinal, essa é a graça dos mitos: ler e depois, em uma noite gelada de inverno ou em uma quente de verão, contar aos amigos o que aconteceu quando o martelo de Thor foi roubado ou como Odin obteve o hidromel da poesia para os deuses.
Um dos melhores contos e que, acredito eu, ganhou algumas poucas características inéditas foi O Hidromel da Poesia, que narra a origem da música, das histórias e de todas as poesias. Além deste, há outros que merecem destaque, como A Cabeça de Mímir e o Olho de Odin, onde o autor reconta como Odin se tornou o Pai de Todos e adquiriu sua imensurável sabedoria e Thor na Terra dos Gigantes, que traz uma perspectiva bastante peculiar sobre a velhice e a força do poderoso deus do trovão.
Mitologia Nórdica foi a minha primeira experiência completa com uma obra de Gaiman. Já havia lido um conto seu (
Como O Marquês Recuperou Seu Casaco,
spin-off de
Lugar Nenhum) presente em
O Príncipe de Westeros e Outras Histórias e, inclusive, não cheguei a me afeiçoar muito pela história. O motivo foi o mesmo elencado pela Bianca na resenha de
Alerta de Risco: havia a sensação de que ainda não estava pronto para ler algo do autor. Como minha parceira de resenha,
fiz bem em esperar meu nível de leitura se elevar e amadurecer para finalmente pegar uma obra de Gaiman que fosse densa, profunda e criativa, tal como sempre ouvi falar.
Narrado em terceira pessoa, com uma linguagem limpa, fácil, cheia de vida e, principalmente, fluida, Mitologia Nórdica traz em suas quase 300 páginas contos bem curtos e que oferecem uma excelente opção para quem gosta de histórias breves e, claro, para quem é fã dos mitos nórdicos. Eu já havia lido uma coletânea sobre mitologia nórdica (Os Filhos de Odin, de Padraic Colum) e pude perceber que a principal diferença que se pode encontrar, entre o que outros escritores recontaram e o que Gaiman recontou, está na narrativa. Enquanto a grande maioria dos autores se debruçam sobre uma escrita cansativa, extremamente formal e densa, Gaiman traz em seus quinze contos uma escrita agradável e igualmente objetiva, regada ao senso de humor e as piadas que se tornaram marca registrada do autor.
Segundo o
Omelete, um dos pontos principais para o autor foi que
nenhuma história do livro foi criada do zero — o que Gaiman se permitiu fazer foi dar uma nova roupagem a elas. Em entrevista ao site, ele contou que o processo de criação foi cansativo para alguém acostumado a criar seus próprios universos. "
O que eu sou bom em fazer é justamente criar coisas e a minha regra era que eu não poderia. Mas eu podia criar a nível de detalhes colaborativos, ou seja, se a história diz que um personagem foi de um ponto para outro, eu podia fazer uma interpretação pra ele de como foi ir de um ponto ao outro." Gaiman disse ainda que fez muito disso ao longo do livro — por exemplo, para construir a história do capítulo "
O Hidromel da Poesia", o autor precisou buscar detalhes em outros contos para deixar a trama bem amarrada.
"Até o martelo de Thor foi culpa de Loki. Com ele, era assim: havia ressentimento até mesmo junto à maior gratidão, e havia gratidão mesmo no momento em que ele era mais odiado".
Quanto a escrita de Gaiman, o que se pode notar, mesmo antes de ter contato com qualquer uma de suas obras, é que ele é — quase que literalmente — a personificação da criatividade. Ele compõe com uma maestria incrível, se apegando a um tipo de formalidade sem floreios, profunda, mas sem excessos, e que contribui muito para a boa relação autor-leitor. Um ponto extremamente forte nas obras do autor, sem dúvidas, é sua escrita e toda a sua criatividade. Como eu sempre digo, uma coisa é você ter uma ideia para um livro, outra extremamente diferente é você saber desenvolver e dar assas a isso, e Gaiman escreve e cria com a mesma facilidade que tem para respirar. Suas obras são de uma beleza quase tangível — basta observar as críticas feitas —, elevando o ordinário ao extraordinário.
Os personagens de cada mito variam com relação aos focos, ainda que Thor apareça na maioria das histórias. A seleção feita pelo autor, no entanto, nos permite conhecer um pouquinho de cada um dos principais Aesir, divindades guerreiras que residiam em Asgard, nas mais diversas situações: desventuras na terra dos gigantes, missões, matanças etc. O interessante é que conhecer a mitologia nórdica e seus deuses de verdade rompe o romantismo criado pela Marvel, que traz o oposto de tudo o que de fato são os deuses de Asgard: não muito heroicos e nem muito inteligentes. No entanto, apesar de repudiar a romantização criada pela Marvel e por muitos outros que se dedicam a adaptar radicalmente os mitos escandinavos, concordo com a afirmativa de Gaiman: "qualquer forma que as pessoas possam descobrir a mitologia nórdica é boa, não importa como".
Quanto as críticas, bem eu não tenho nenhuma ressalva. Alguns críticos, em exaltação a estupidez, reclamaram da superficialidade presente nos 15 contos, como se fosse tão difícil assim observar que Gaiman não tinha a intenção de criar um manual sobre Mitologia Nórdica (até porque, como ele bem ressalta na apresentação, existem poucas informações para isso). O que o autor queria era recontar, em sua escrita fantástica e envolvente, as mais famosas histórias escandinavas — e acreditem, ele fez isso muito bem.
Tão bem-feita quanto o livro ficou a edição! A Editora Intrínseca, sem dúvidas, tem sido a melhor nesse quesito, sempre agradando seus leitores e fazendo com que nos sentíssemos extremamente felizes em ganhar tão belas edições — assim como os norte-americanos. A capa (dura) de Mitologia Nórdica, mantida a original, chama muita a atenção, principalmente por trazer o poderoso martelo de Thor, que tornou-se símbolo oficial das lendas nórdicas. A diagramação conta com fontes agradáveis, ilustrações belíssimas, papel pólen soft (amarelinho) e é livre de erros gramaticais. É a materialização da perfeição, o sonho de qualquer leitor! Parabéns, Intrínseca!
Por já ter lido Os Filhos de Odin, já conhecia mitos como O Mestre Construtor ou Os Filhos de Loki, mas, a bem da verdade, pela visão de Gaiman, que se manteve fiel as tradicionais lendas dos deuses de Asgard, foi muito mais fascinante. Mitologia Nórdica é um poderoso convite para embarcar numa jornada que parte da origem do universo e vai até o crepúsculo dos deuses, onde mitos como Antes do Principio, e o Que Veio Depois, Os Últimos Dias de Loki e O Hidromel da Poesia trazem uma nova perspectiva acerca da criação do mundo, da origem dos terremotos e da arte da escrita. Só nega o convite aquele que realmente não compreende o fato de que Mitologia Nórdica foi feito para agradar até o mais exigente dos leitores. Eu recomendo!
Primeiro Parágrafo: "É tão difícil escolher um universo favorito de lendas e mitos quanto se decidir por um prato favorito (em algumas noites queremos comidas tailandesas, em outras, sushi, e às vezes só conseguimos pensar na comida caseira e simples de nossa infância)".
Melhor Quote: "É raro cometer erros quando se está calado."