Livro: Reportagens
Título Original: Journalism
Autor: Joe Sacco
Editora: Companhia das Letras
Páginas: 200
ISBN: 9788535927313
Sinopse: Na última década, Joe Sacco tem se voltado cada vez mais aos quadrinhos curtos para nos mandar seus relatos dos conflitos ao redor do globo. Reunidas pela primeira vez, essas reportagens mostram por que Sacco é um dos principais correspondentes de guerra dos nossos tempos. São histórias de refugiados africanos em Malta, de contrabandistas palestinos, de criminosos de guerra e de suas vítimas. E ainda de uma incursão com o exército americano no Iraque, em que ele vê de perto a miséria e o absurdo da guerra. Um de seus trabalhos mais maduros, Reportagens traz sacco nas linhas de frente dos conflitos, relatando com sensibilidade e crueza os horrores — e as esperanças — da humanidade.

Joe Sacco nasceu em Malta, em 1960, e vive nos Estados Unidos desde os doze anos de idade. Formou-se em Jornalismo, mas preferiu dedicar-se aos quadrinhos, enquadrando sua arte à profissão. Viajou por muitos lugares e já esteve em frontes de conflitos, cobrindo os mais diversos casos. É autor de Palestina — Uma nação ocupada, e em Reportagens reúne as suas mais marcantes publicações de coberturas jornalísticas.

    Através dos quadrinhos podem ser contadas boas histórias. Através do jornalismo também. Juntando esses dois elementos uma coisa extremamente bem feita e detalhada pode vir à tona. Com Joe Sacco, se tem a união desses dois universos e o bom aproveitamento de cada um deles. Relatando os acontecimentos através de diversos pontos de vista, o autor procura dar um relato fidedigno da realidade ao leitor. São seis histórias narrando — e desenhando — a realidade de formas diferentes. 
    Sacco passa pelos julgamentos de guerra entre muçulmanos e sérvios, onde detalhou todas as atrocidades cometidas pelos militares. Depois, entra no âmbito da incansável guerra entre judeus e palestinos, tendo como foco os conflitos em Gaza. Em seguida, mergulha de cabeça na Guerra da Chechênia e como os chechenos — em especial as mulheres — estão sofrendo com ela, como estão tentando sobreviver fora do país e como as autoridades russas varrem seus problemas para debaixo do tapete — o autor chega até a fazer ataque pessoal à Vladimir Putin.
      Até mesmo o lado dos militares Sacco mostra: o quanto muitos se preocupam com suas vidas e com a de seus amigos, os esforços que fazem todos os dias para enfrentar os ataques e para capturar criminosos que são uma ameaça à nação. O treinamento de novos soldados é mostrado com todos os escrúpulos, narrando os absurdos passados pelos iniciantes através do tratamento que recebem dos superiores. Há também o foco nos refugiados africanos que buscam na Ilha de Malta um espaço para recomeçar — e como a partir daí são julgados pelos malteses, por isso o nome da história: "Os indesejáveis". Por fim, Sacco evidencia os indianos da casta de dalits, os "intocáveis", a situação difícil pela qual passam nas aldeias em que vivem e o quanto o governo da Índia faz para ocultar o mar de corrupção por trás de toda essa miséria, onde apenas os poderosos de castas mais altas podem desfrutar de uma vida confortável.

"O equilíbrio não devia acobertar a preguiça. Caso haja duas ou mais versões dos fatos, o jornalista precisa não só explorar e avaliar cada declaração, mas também ir a fundo no relato contestado independente de quem o relata. Por mais que o jornalismo seja "O que eles disseram que viram", ele também é "O que eu vi". O jornalista deve empenhar-se em descobrir o que acontece e relatar, e não tornar a verdade neutra só porque houve distribuição totalitária de espaço" (p. 6).
 
   A proposta de um livro que une jornalismo e quadrinhos me pareceu atraente logo de cara, pois trata-se de algo a que nunca tive acesso antes e por isso a curiosidade me trouxe Reportagens — será que a proposta é tão boa quanto parece? Joe Sacco é um nome famoso no jornalismo americano. O correspondente de guerra já publicou seus trabalhos em vários veículos de comunicação importantes para a informação de massa, mas também não sabia muito sobre como esse trabalho funcionava, e este livro foi, se dúvida alguma, uma maravilhosa oportunidade.
   A escrita de Sacco não perdeu seu caráter jornalístico, apenas foi apresentada em outro formato. As falas diretas tomaram seu espaço como balões de diálogo sobre os entrevistados representados pelo desenho. As falas indiretas e a narração/exposição dos fatos ocorrem nos balões narrativos. O formato do texto é contido, já que não se trata de apenas mais uma história fictícia dos quadrinhos. Por lidar com relatos verídicos, o formato é mais sério e brando, não se utilizando de muitos recursos como se costuma ver nas comics. Alguns quadrinhos se apresentam coloridos, outros em preto e branco.
   A narrativa de Sacco é carregada de sarcasmo — ele visa a objetividade, mas não deixa escapar uma boa oportunidade de satirizar a situação contra os poderosos. Apesar de claramente tomar uma posição — ele deixa bem claro em sua introdução que está ali para dar voz aos que não são ouvidos —, o repórter mostrou diversos lados da situação. Na história "Complacência Mata", ele toma os militares como personagens e mostra suas versões dos fatos. Muitos o criticaram e sua resposta evidenciou que seu compromisso é sempre com a verdade.
   Outro detalhe que ele acrescenta na consideração da citação acima é que qualquer jornalista, inclusive ele próprio, faz toda a diferença no transcorrer dos fatos. Ou seja, a presença de um jornalista será determinante para moldar as mais diversas ocorrências. Este pensamento do autor se faz tão presente que ele se auto-retrata nos desenhos, mostrando como chegou até os entrevistados, como se posicionou no local, etc., tudo com o uso de diferentes pontos de vista nos panoramas dos quadrinhos. Isso tira a impressão que a figura do repórter é o de uma mosquinha que apenas observa o que está à sua volta como um ser onipresente.
"Passamos anos assistindo à matança da nossa sala de estar e, agora que acabou, vestimos toga e finalmente resolvemos dar um jeito. Dizer o que é genocídio depois de ocorrido é muito mais fácil do que impedir. Como me disse o advogado bósnio Saih Karabdic: Alguém deu a ordem, alguém executou e alguém permitiu. E todos são culpados" (p. 13).

   Mesmo com sua escrita envolvente, o que mais chama a atenção são os desenhos — a forma como Sacco detalhou os personagens (suas expressões que claramente representavam animação, tristeza, hesitação, desconfiança, etc.) e a situação que viviam (o cenário que era permeado por guerras, destruição, miséria, etc.) trouxe uma realidade que não é revelada de todo em uma reportagem textual. Com uma linguagem fria, amarga e direta, o autor consegue comover devido à união deste elemento com seus desenhos que conseguem envolver o leitor com um único olhar.
   Sabemos, como leitores, que apenas a escrita é o suficiente para fazer com que imaginemos muita coisa, mas o lado visual faz com que entremos na realidade apresentada com mais facilidade, principalmente quando são baseados em fatos reais. Sacco responde à contradições logo em sua introdução quando diz que muitos não consideram a junção de quadrinhos e jornalismo uma coisa coisa possível, já que o primeiro trabalha com desenhos, que são, em tese, subjetivos, e o jornalismo trabalha com objetividade, clareza. Mas Sacco mostra que essa fusão é possível e muito eficaz, pois passa a objetividade e clareza de uma forma única e original.
   O livro foi publicado pelo selo da Cia das Letras destinado aos quadrinhos: Quadrinhos na Cia. A capa retrata as imagens dos desenhos de cada história, captando as expressões de cada um dos personagens e dá ao todo um toque de seriedade digna de um livro-reportagem, conversando bem com a obra no geral. Seu tamanho é maior que o convencional: 19,50 x 26,50. A edição com as notas facilitaram a leitura, assim como a tradução. O ritmo flui incrivelmente bem e há considerações complementares do autor sobre o processo de realização das reportagens e relatos que não entraram nas matérias.
   Reportagens é mais que um diferencial para o meio literário, é um relato de uma realidade que não cabe na nossa. Não apenas ler, como também ver aquilo que nos parece tão distante — logo ali, do outro lado do mundo e das páginas — traz um entendimento inesperado e uma rápida absorção do que não se ouve falar nas grandes mídias. Os lados que nunca são ouvidos são abordados por Sacco de forma direta e ao mesmo tempo envolvente, comovente. São histórias que todos deveriam parar para ler, ver e sentir.

Primeiro parágrafo: "Este volume reúne a maior parte das reportagens de menor extensão que fiz nos últimos anos para revistas, jornais e antalogias. Sendo assim, me parece que ele exige algum tipo de saraivada introdutória para achacar todos aqueles que se opõem à legitimidade dos quadrinhos como forma eficiente de fazer jornalismo".  
Melhor quote: "Tenho interesse sobretudo por aqueles que raramente são ouvidos, e não creio que caiba a mim equilibrar suas vozes com as apologias bem escovadas dos que detêm o poder. Os poderosos geralmente estão muito bem servidos pela mídia massiva ou pelos órgãos de propaganda ideológica. Os poderosos têm de ser citados, é claro, mas para que seus pronunciamentos possam ser avaliados diante da verdade, não para obscurecê-la".



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