Reino Unido, Inglaterra, Oxford 2054. Este é o cenário inicial da premiada história de Willis. Viagens no tempo já são uma realidade nessa época e a estudante da Universidade de Balliol, Kivrin Engle, que tem ânsias de um dia ser uma grande historiadora, alimenta o sonho de viajar para a Idade Média. Sua curiosidade a respeito desse tempo remoto é imenso e ela deseja descobrir se os dados que todos acreditam serem verdadeiros realmente o são. O setor responsável por esse tipo de viagem é Medieval, e a responsabilidade da Universidade está sob as ordens de Gilchrist, um homem que não mede escrúpulos para conseguir impressionar seu superior e mostrar que é tão capaz de assumir a diretoria quanto ele.
O responsável por fazer a leitura do fix é
Badri Chaudhuri, um dos técnicos mais conceituados do Balliol. Mas assim que consegue obter o fix,
apresenta estranhos sintomas de uma doença que o deixa imediatamente incapaz de dizer ou fazer qualquer coisa coerente. Logo Badri é levado a um hospital e, sob os cuidados de Mary, descobre que a causa da sua doença é um vírus muito poderoso e o pior de tudo: não há registros de algo do tipo em outro lugar do mundo. Em pouco tempo, outros pacientes com os mesmos sintomas começam a aparecer e
a cidade de Oxford entra em quarentena. Dunworthy fica desesperado, pois não sabe a localização exata de Kivrin e
nem se a garota sequer conseguirá voltar.
O que despertou minha curiosidade sobre
O livro do juízo final foi justamente o gênero
ficção científica, que é uma grande paixão minha, especialmente quando envolve
viagens no tempo — algo que acredito que, em alguns anos, o ser humano dominará.
Connie Willis é uma das autoras mais reconhecidas desse meio e ler logo de cara seu livro mais famoso e o primeiro da escritora a ser publicado no Brasil foi
uma honra e tanto. Não foi exatamente o que eu esperava, mas com certeza me surpreendeu e me mostrou um outro lado dos romances que envolvem
sci-fi.
A
narrativa é em
terceira pessoa, a não ser pelos capítulos em que Kivrin detalha as coisas que vivencia no século XIV como forma de registro histórico de sua passagem por aquela época. Em um dispositivo instalado na mão, ela consegue
gravar relatórios sobre seu dia-a-dia enquanto finge que está rezando com as mãos unidas próximas à boca. Quando ela assume a narrativa, a maior diferença é que a escrita assume
o tom de relatório e
a visão de Kivrin se torna mais clara para o leitor.
A
escrita de Willis é
extremamente descritiva — porém não com detalhes do ambiente e dos personagens, e sim, com suas
ações. Ela se demora em cada atitude que cada personagem toma, o que torna o desenrolar do enredo bastante cansativo em alguns momentos, como se a história andasse a passos lentos. O livro é dividido em
três partes, como três livros. O primeiro foca nos primeiros passos de Kivrin na Idade Média e na saga de preocupações de Dunworthy. Já o segundo, as coisas se agravam com Badri, e
o desespero, tanto num século como noutro, começam a se instalar quando eles avançam nas descobertas. Já o terceiro e último consegue captar a essência geral do livro e passar a mensagem central a respeito de amor e doação ao próximo — tudo isso cercado por detalhes científicos e ficcionais.
"Como Deus teria sido capaz de mandar Seu único filho, Seu precioso filho, para um perigo tão grande? A resposta é amor. Amor!
— Ou incompetência — murmurou Dunworthy. [...]
E depois que Ele deixou o filho ir, Ele se preocupou com isso em cada minuto, pensou Dunworthy. Imagino se ele terá tentado cancelar tudo" (p. 220).
Willis passou
cinco anos trabalhando nessa obra. Podemos perceber o quanto de
pesquisa (em conjunto com grandes doses de imaginação) a autora precisou fazer para compôr esse conjunto de ideias. Muitas
referências são utilizadas, a começar pelo próprio título.
Kivrin chama seus relatórios de "Livro do juízo final" em homenagem a um registro homônimo, como um censo que contabilizou terras e seus senhores, datado de 1086 e executado por Guilherme I da Inglaterra. Os cristãos da época acreditavam que quando Jesus voltasse, ele contabilizaria os feitos de cada pessoa, assim como o censo fez com as terras — por isso o nome. Não apenas esse detalhe, mas
muitas outras referências à realidade que se vê nos livros de história acerca da era medieval (como a função da Igreja Católica, leis e julgamentos, o funcionamento de uma casa senhorial e de um vilarejo, etc.) são minuciosamente trabalhados ao longo do livro. E por falar em Igreja, é possível observar uma forte presença da religiosidade, não apenas no século XIV como no XXI. Além disso,
o debate sobre a presença de Deus na Terra é trabalhada em todas as etapas.
Por ser uma trama que fala sobre o ano de 2054 escrita no final da década de 1980 e início dos anos 1990,
O livro do juízo final parece, aos nossos olhos contemporâneos, muito antigo. Aparelhos celulares, laptops, tablets, entre outros dispositivos tecnológicos móveis, não são uma realidade na trama de Willis. Para nós, chegar ao ano de 2054 sem esse tipo de tecnologia parece inacreditável, mas é muito interessante
ver sob a ótica de uma pessoa que viveu naquela época e não podia imaginar avanços simples como
smartphones, mas
conseguia deslumbrar viagens no tempo e seus detalhes técnicos com muita facilidade. Inclusive, uma das coisas que mais me chocou foi a dependência que os personagens tinham de seus telefones fixos — que em 2054 já exibiam a imagem de quem estava do outro lado da linha, mas não conseguia se desprender do fio.
Os
personagens conquistam facilmente.
Kivrin, a protagonista — que só começa a se revelar como tal na segunda parte —, é
o melhor tipo de mocinha: amável nos momentos certos, assim como
esperta e corajosa, parecendo sempre pronta para enfrentar os maiores perigos (embora nem sempre esteja). Por muitos momentos
fiquei me perguntando por que ela queria tanto estar na Idade Média, afinal, é uma época muito nociva — especialmente para mulheres. Mas mesmo passando por dificuldades,
o encantamento de Kivrin em estar de fato no século XIV, realizando um sonho, é passado com muita realidade. Em certos pontos, dá até para entender o lado dela. Acima de tudo, Kivrin é sensível e demonstra o oposto do desprendimento que muitos dos cientistas da história têm — e nisso percebe-se que ela é tão humana quanto seu tutor. Ela
está sempre pronta a ajudar e se importa de verdade com todos a sua volta, chegando a criar laços com os habitantes do vilarejo medieval em que se instala.
Os
secundários também são bem construídos. Dunworthy parece até assumir o protagonismo ao lado de Kivrin. Sua preocupação torna tensos todos os capítulos em que ele é o foco,
fazendo com que o leitor compartilhe seus pensamentos e medos sobre Kivrin e sobre os problemas que desencadearam a doença de Badri.
Um dos melhores personagens é, sem dúvida, Colin, o sobrinho-neto de Mary, que fica sob os cuidados de Dunworthy enquanto sua tia-avó trabalha no hospital. Apesar de pequeno, surpreende por ser tão independente e ter controle sobre as situações inacreditáveis em que se mete. Além disso,
seus bordões são impagáveis — uma criança usar termos como "absolutamente necrótico", "cadavérico" e "apocalíptico", é no mínimo inusitado. E
Agnes, a menininha que se torna a companheira de Kivrin no século XIV — o equivalente ao que Colin é para Dunworthy em 2054 — é outra prova que
a inserção de personagens infantis nessa história foi certeira, pois seu gênio forte supera o de todos os outros.
"As lanternas lançavam seus raios nas facetas cristalinas dos flocos de neve, fazendo-os cintilar como joias, mas foram as estrelas que fizeram Kivrin prender a respiração, centenas de estrelas, milhares de estrelas, todas cintilando como diamantes do ar gelado. 'Está brilhando', disse Agnes, e Kivrin não entendeu se ela estava falando da neve ou do céu" (p. 315).