Livro: Crônica do Pássaro de Corda
Título Original: Nejimakidori Kuronikuru
Autor: Haruki Murakami
Editora: Alfaguara
Páginas: 767
ISBN: 978-85-5652-056-2
Sinopse: Toru Okada é um jovem casado, sem filhos, que leva uma vida banal em Tóquio. Quando seu gato desaparece, ele vê seu cotidiano se transformar. A partir disso, personagens cada vez mais estranhos começam a aparecer ao seu redor, transformando a realidade em algo digno de sonho. Com seus fantasmas invadindo o mundo real, Toru é obrigado a enfrentar os problemas que carregou consigo por toda a vida. Conjugando os elementos mais marcantes da obra de Haruki Murakami, Crônica do pássaro de corda fala sobre a efemeridade do amor, a maldade que permeia a sociedade moderna e o legado violento que o Japão trouxe de suas guerras. Cativante, profético, cômico e impressionante, é um tour de force sem paralelos na literatura atual.

Haruki Murakami nasceu em Kyoto, no Japão, em janeiro de 1949. É considerado um dos autores mais importantes da atual literatura japonesa. Escreveu seu primeiro romance – Ouça a canção do vento – em 1979, mas foi em 1987 que seu nome se tornaria famoso no Japão, com o lançamento de Norwegian Wood. Sua obra foi traduzida para 42 idiomas e recebeu importantes prêmios, como o Yomiuri e o Franz Kafka. O escritor vive atualmente nas proximidades de Tóquio, e além de escritor, é aficionado por esportes de resistência. Esta é a primeira versão brasileira de Crônica do Pássaro de Corda, lançado com exclusividade pela Alfaguara.

    A vida de Toru Okada não poderia ser mais simples. Desempregado há algum tempo, ele passa o dia inteiro cuidando dos serviços domésticos (o que para ele não é problema algum) enquanto sua esposa, Kumiko, trabalha numa revista. Logo no início, descobrimos que o gato de estimação do casal, Noboru Wataya (que tem o mesmo nome que o irmão mais velho de Kumiko), está desaparecido. Todos os dias, Toru sai para procurá-lo, atendendo aos pedidos de sua esposa. Eles vivem num bairro simples, onde os fundos da casa se abrem para um corredor comprido e estreito, que dá no quintal das casas vizinhas. Toru procura o gato pelo corredor, pois ele gostava de caminhar por lá. O sumiço de gato é apenas o gatilho para que diversas coisas estranhas comecem a acontecer na vida pacata de Toru.
    Numa dessas idas ao corredor em busca do gato, ele conhece May Kasahara, uma garota de dezesseis anos que mora em frente à casa mal-assombrada da região – era considerada de mau agouro porque todas as pessoas que moraram ali cometeram suicídio. Toru desenvolveu certo fascínio pela casa, especialmente pela estátua do pássaro de corda no quintal (uma espécie de pássaro que havia pelo bairro, e sempre cantava prendendo a atenção de Toru, embora ele nunca o tenha visto) e pelo poço sem água que ficava nos fundos. May passou a fazer companhia a Toru sempre que ele estava lá, assim desenvolveram uma amizade inusitada. Além da aparição de May, Toru também passou a receber ligações de uma mulher misteriosa que lhe falava coisas obscenas ao telefone e dizia conhecê-lo bem, assim como ele a conhecia – embora Toru tivesse certeza que não.
    Outros acontecimentos começam a fazer parte de sua rotina: Kumiko chegando tarde em casa, duas irmãs misteriosas com nomes estranhos (Malta e Creta Kanô) que aparecem com o objetivo de ajudá-lo a achar o gato, o encontro inesperado com um veterano de guerra, o Tenente Mamiya, e o lançamento à carreira política de seu cunhado, a mais recente celebridade do mundo dos negócios, Noboru Wataya. Aos poucos, realidade e fantasia começam a se misturar e Toru precisa ligar os pontos dessa história se quiser descobrir qual o sentido de tudo isso, além de encontrar o caminho para consertar as loucuras que se acumularam em sua vida.

"Todas as pessoas acham que um gigantesco, complexo e incrível mecanismo movimenta o mundo, mas estão enganadas. Na verdade, é o pássaro de corda que sobrevoa os quatro cantos, dá um pouquinho de corda em cada lugar, girando a pequena chave, e movimenta o mundo. O mecanismo é bem simples, como o de um brinquedo que dá corda. Basta girar a chave, mas só o pássaro de corda pode fazer isso" (p. 367).

    Sempre que ouvia falar de Haruki Murakami, haviam duas opiniões primordiais: uns o amavam intensamente, e outros o detestavam vigorosamente. Acho que daí surgiu a curiosidade de ler algo do autor e tirar minhas próprias conclusões. Calhamaços não costumam me assustar, mas quando me deparei com a narrativa de Crônica do pássaro de corda, percebi que seria uma leitura custosa – independente de ser boa ou ruim. O gênero ainda é incerto – outro ponto divergente entre os críticos. Já vi pessoas o rotularem de pós-modernista (um termo vago demais, ao meu ver), surrealista (o que pressupõe que sua trama não tem um significado, apenas elementos aleatórios, algo de que discordo parcialmente), mas aquele que mais fez sentido para mim foi o de "realismo mágico" – pois na mesma medida em que a trama é realista, também é fantasiosa.
    A narrativa é bastante descritiva, o que a torna razoavelmente arrastada, porém é isso que a faz ser imersiva. É como se estivéssemos sentindo tudo aquilo que o protagonista sente. Os relatos são muito reais e envolventes, apesar de longos. Há sempre dois lados na escrita do livro: o bom e o ruim, então tive que me adaptar a esses panoramas distintos ao longo da leitura. Murakami se utiliza de uma narrativa linear nas duas primeiras partes, enquanto na terceira e última ela se torna não-linear. Em ambos os casos, ela assume o formato de crônica. Nas duas primeiras, Toru é o foco narrativo, embora, em alguns momentos isso possa ser contestado pela presença de personagens que contam suas histórias por vários capítulos (a partir de conversas com o próprio Toru), e é capaz de nos fazer esquecer quem é o protagonista do livro. Já na última parte, há capítulos inteiramente dedicados a outros personagens. Ao todo, a narrativa em primeira pessoa predomina.
    O que se pode compreender lendo Crônica do Pássaro de Corda é que a obra serve como metáfora da realidade – embora haja muitas coisas que não fazem o menor sentido! Ao mesmo tempo em que "somos" os personagens, também ocupamos a posição de juízes e carrascos. Ou seja, personagens e observadores. Esse posicionamento é, ao mesmo tempo, uma armadilha e um prazer. Deixando um pouco de lado os detalhes filosóficos, Crônica do Pássaro de Corda também é um livro que fala sobre guerra, mesmo que de maneira pouco convencional.
    O autor deixa nas referências bibliográficas todas as obras em que se inspirou para contar a história das guerras do Japão – com foco na invasão da Manchúria e no conflito do Japão com a União Soviética. Esse cenário cria o pano de fundo para as história do Ten. Mamiya, mesmo que a guerra date de 1930 e o enredo seja da década de 1990. Esse destaque para a história da Segunda Guerra sob o ponto de vista japonês é muito interessante, já que costumamos ter uma visão ocidentalizada – sempre contada pelos Estados Unidos e Europa –, e esquecemos que o Oriente também tem sua versão.
    É impossível não enxergar um pouco de nós mesmos em Toru. Ele é uma pessoa simples, que leva uma vida rotineira e sem grandes perspectivas. Tudo para ele é prático e fácil – ao menos essa é a sensação que passa durante boa parte do livro. Porém, Toru começa a encarar as coisas de outra forma quando diversas loucuras acontecem em sua vida e perturbam sua paz. Em suma, ele não é um personagem muito profundo – as circunstâncias é que fazem com que ele evolua e se torne assim, pois até a metade da história, ele simplesmente permitia que tudo o atingisse sem se preocupar em reagir. Quando as coisas começam a ficar mais claras, o personagem evolui efetivamente.

 "O ódio é como uma sombra longa e escura. Normalmente nem a própria pessoa sabe de onde ele vem. É uma faca de dois gumes. Fere os outros, mas também fere a nós mesmos. O ódio que causa uma mágoa profunda nos outros é o mesmo que também causa uma mágoa profunda em nós" (p. 364).

   Ao mesmo tempo em que Toru parece representar a maioria das pessoas da terra, rodeadas de normalidade e tédio, os personagens secundários vão muito mais além, já que carregam toda a esquisitice que falta à vida de Toru. May Kasahara é o melhor exemplo, pois forma uma amizade estranha com o protagonista, a quem faz inúmeros questionamentos inusitados. Assim como a maior parte dos adolescentes, ela ainda não sabe o que fazer no futuro e tem a mente cheia de incertezas, sempre procurando respostas – mesmo que em alguns momentos pareça bastante sábia para a idade. É isso que faz dela uma das melhores personagens. O melhor de tudo é o quanto ela acha Toru estranho, enquanto ela se posiciona como "normal e sensata", ou seja, os pontos de vista que nos são apresentados variam muito. Enfim, todos os personagens têm uma história para contar e todos representam uma peça no enorme quebra-cabeça montado por Toru (e por nós).
     Apesar de reconhecer a importância de cada um deles, não consegui estabelecer ligações com nenhum e nem mesmo com a própria história. O romance entre Toru e Kumiko não foi muito convincente. Apesar de estarem casados por seis anos e todo o brilho nos olhos ter se perdido e o casamento ter caído na rotina, ambos parecem extremamente distantes (e essa não é uma consequência do enredo, pois não consegui visualizar o amor que eles diziam sentir um pelo outro nem mesmo quando Toru relembra o passado em que se conheceram, quando decidiram se casar, quando se apaixonaram, etc.,). De forma geral, apesar de ter gostado de alguns personagens, não fui capaz de sentir empatia, especialmente pelo protagonista – algo que seria muito importante para me envolver em sua narrativa – mas não o considero artificial, muito pelo contrário: ele é realístico, inclusive me lembrou claramente pessoas que conheço e convivo.
   Murakami ainda é um escritor que tem pouco espaço no Brasil – literatura clássica japonesa não é comum por aqui, costuma ter um nicho bastante específico. A publicação de Crônica do Pássaro de Corda, além de outros livros do autor, é uma iniciativa interessante do selo considerado mais "cult" da Cia das Letras, a Editora Alfaguara. A edição está impecável: desde a capa diferente e de cores muito bonitas (que combinam com a edição dos outros livros que a editora está lançando) até a revisão e tradução (de Eunice Suenaga).
    Não espere um mistério onde todas as pontas soltas são amarradas no final. Muito pelo contrário: há chances enormes de terminar o livro com mais perguntas que respostas. Porém, não acredito que isso seja motivo para críticas negativas ou receios com a leitura, pois é apenas uma marca do autor (e daí surgiu o rótulo de "literatura surrealista"), não uma falha de escrita. Essa característica abre margem para diversas interpretações – especialmente quando se considera que os personagens são metáforas, assim como cada acontecimento que rodeia a vida de Toru Okada. Crônica do Pássaro de Corda é mais que um livro de mistério cheio de fantasias e acontecimentos inexplicáveis – ele também fala sobre amor, a fragilidade das relações, a profundidade do ser humano, qual a nossa função no mundo, entre muitas outras reflexões que serão capazes de te deixar acordado a noite inteira.

Primeiro parágrafo: "Quando o telefone tocou, eu estava na cozinha preparando macarrão. Estava assoviando a abertura de La gazza ladra, de Rossini, que tocava no rádio. Uma música perfeita para preparar espaguete".
Melhores quotes: "Será que é possível uma pessoa entender completamente a outra? Quando tentamos compreender alguém e dedicamos muito tempo e esforço sincero, até que ponto podemos nos aproximar da essência do outro? Será que sabemos mesmo a parte que realmente importa de quem acreditamos conhecer bem?".
"As pessoas costumam ignorar e repudiar tudo aquilo que está além de sua compreensão, como se fosse algo irracional, que não merecesse consideração".
"Não importava o que os outros diziam, para mim a vida era uma grande injustiça. Se todos carregassem as mesmas dores, acho que eu ainda aguentaria. Só que não carregavam. A dor é extremamente injusta".


Um Comentário

  1. De cara o que me chama atenção nesse livro é que seria a primeira vez que eu leria algo com temática japonesa, costumes, modo de agir, crenças enfim, seria enriquecedor. Porém ao ler os comentários achei uma viagem, toda uma historia em busca de um gato. Me remeteu a lembrança de 7 minutos para a meia noite, uma historia fantasiosa cheia de meias verdades ou meias mentiras?? Praticamente tudo simbólico e que pode realmente deixar a leitura arrastada. Mas acho que está valendo caso eu tenha a oportunidade de ler.

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