Em um desses passeios pelos pontos turísticos do lugar, onde sempre era acompanhado pelo fiel motorista Euzébio, Jean-Jacques se deparou com o cabaré Mère Louise, muito famoso na região por receber membros da alta sociedade, especialmente políticos importantes, como o imponente e respeitado senador José Fernandes Alves de Mendonça. Nessa curta passagem, Jean-Jacques pôde ver, em uma das janelas, uma bela morena de olhos verdes, que lhe sorriu de volta. Embasbacado por tamanha beleza, Jean-Jacques decide retornar ao cabaré à noite, e quando o faz, se depara com uma aura quase mágica: música, bebida e risadas permeavam o salão, e, para abrilhantar a festa, surge Verônica, a mulher que vira na janela. É nesse momento que Jean-Jacques descobre que tê-la para si será uma tarefa difícil, já que ela presta serviços exclusivos ao senador Mendonça.
Com ajuda de Louise, a dona do cabaré, Jean-Jacques passa a compreender no que se baseia a relação de Verônica e Mendonça: ele, por ser rico e influente, é o principal provedor do cabaré, exigindo apenas Verônica em troca de seu auxílio para manter a casa funcionando. Verônica tem grande apreço por Louise, que é grande amiga de sua mãe, Jacinta. Por isso, a jovem mulher se submete às fantasias do senador e finge amá-lo. Mas quando conhece Jean-Jacques, Verônica quebra o gelo que há em seu coração e descobre que nem todos os homens são iguais, apaixonando-se pelo sonhador que a observa como nenhum homem a observara antes. Quando percebe que seus sentimentos são correspondidos, Jean-Jacques faz de tudo para lutar por um amor que parece tão impossível, formando, assim, um triângulo amoroso que traz muitas consequências para a vida do casal.
O livro de estreia de Aliel Paione me despertou o desejo de conhecer a Copacabana de 1900. Porém, a curiosidade maior era como um livro publicado em 2017 poderia retratar um tempo tão remoto. Confesso que não sabia o que esperar (uma leitura com ar contemporâneo ou antiquado?), mas acabei me deparando com uma obra atual em sua publicação e clássica em sua escrita. Quando se lê Sol e sonhos em Copacabana, mergulha-se em outro universo, onde aquilo que é antigo de repente torna-se parte da realidade, e Paione pareceu não medir esforços para que essa sensação nos fosse passada.
A narrativa transcorre em terceira pessoa, tendo como foco principal Jean-Jacques. Ao longo da história, também há focos em Verônica, Mendonça, entre outros personagens secundários, penetrando profundamente no âmago de cada um. Como mencionei, a escrita nos remete à obras clássicas – extremamente descritiva e floreada. Esses e outros elementos me fizeram recordar os livros romancistas e realistas, o que também me fez dividir o livro em duas partes (tendo em vista a diferença entre os dois movimentos literários), que ficam claras ao leitor à medida que se aprofunda na história. Nos momentos em que o autor descreve a beleza de Verônica, foi como se visse Machado de Assis descrevendo Capitu ou José de Alencar à Aurélia – se prendendo a detalhes e criando metáforas em torno da beleza e atitudes delas. Outra semelhança com os movimentos é a narrativa urbana. Tanto o realismo quanto o romantismo tinham a característica marcante de descrever a sociedade da época, passando pelo processo de urbanização e retratando momentos políticos, servindo até como registro histórico informal.
"Estava diante, enfim, de uma daquelas raríssimas tiranas de corações, pois Verônica seria capaz de levar um homem ao céu ou ao inferno com a mesma facilidade com que as folhas secas, caídas sobre o chão, são sopradas pelo vento" (p. 39).
Em cada linha é possível perceber o quanto de pesquisa e observação de documentos Paione precisou realizar para chegar ao resultado final. Mesmo não estando na Copacabana de 1900, fui instantaneamente transportada para lá e cada descrição me trouxe um pouco dessa veracidade. Apesar de o romance entre Verônica e Jean-Jacques estar em primeiro plano, não é exagero afirmar que ocupa um espaço tão importante quanto as questões políticas presentes no enredo. Em minha visão, este foi o elemento mais marcante da obra, pois Paione se utiliza de muita sensibilidade ao inserir o tema no enredo, fazendo com que os fatos históricos conversassem bem com o resto da trama: a política café com leite e os envolvimentos de Mendonça nas negociações da dívida brasileira com o Funding Loan, etc. Além disso, não se limita a apresentar o cenário da década, mas também o critica de inúmeras formas. No entanto, o que realmente impressiona é o quanto as críticas feitas à política vigente na época se adequam aos (difíceis) tempos atuais.
Os personagens são instigantes e realistas. Jean-Jacques, o protagonista, é um verdadeiro boêmio, leva a vida de forma leve, procurando a beleza em qualquer detalhe. É impossível não se apaixonar pelo espírito de felicidade que emana do personagem, é o mocinho perfeito em contraste com o cenário perfeito: a bela Copacabana. Apesar de todo o otimismo, Jean-Jacques enxerga os problemas políticos que empurram o Brasil para baixo, ao mesmo tempo em que vê todo o potencial que o país tem para crescer – realmente parece a visão de um estrangeiro sobre nossa terra. Enquanto ele é transparente, há Verônica, a mulher deslumbrante e cheia de mistérios. A atração entre os dois ocorre automaticamente, porém, ela é hesitante e taciturna em suas atitudes – ao contrário do que acontece com Jean-Jacques, o relacionamento proibido provoca um turbilhão em sua cabeça. É difícil compreendê-la por completo, mesmo quando a narrativa avança e foca na personagem. A ambição move uma parte de sua essência, enquanto a paixão move a outra.
Outros personagens compõem a história de forma marcante. O antagonista, na figura do senador Mendonça, é bastante complexo. No início, só o que fui capaz de sentir por ele era raiva, afinal, era seu egoísmo e cinismo o principal fator que separava Jean-Jacques e Verônica. Mas aos poucos, o personagem evoluiu e transformou-se numa representação de muitos homens que nutrem uma amante. Ele também é uma representação clara dos políticos da época (assim como dos atuais), que fechavam negócios movidos pelos próprios interesses. Henriette também é outra personagem tão complexa e curiosa quanto os demais, aparecendo apenas no segundo momento da trama. Acredito que seja com a entrada dela que a história passa pelas maiores evoluções e reviravoltas. Assim como Verônica, Riete também não tem seus objetivos claros, pois sua personalidade parece estar em contínua mutação (transcendendo o próprio enredo), e ao mesmo tempo em que entendemos suas mágoas, também a julgamos.
"Os homens criam e interiorizam suas leis e passam a vida a burlá-las numa gradação sem fim. Reprimem inutilmente seus anseios, transformando-os em artes e em mil coisas que vazam como a água numa superfície porosa" (p. 59).
A capa foi o primeiro detalhe pelo qual me encantei. Ela carrega uma aura de antiguidade pela cor sépia utilizada, retratando a praia de Copacabana – uma produção de Marcus Pallas, cujo trabalho conheço há um tempo e gosto bastante. Minha única crítica negativa é com relação à revisão, que deixou passar palavras unidas e falta de vírgulas em lugares onde se fazia necessário. Infelizmente já observei essas pequenas falhas em outros livros da editora – o que não compromete a leitura, mas é sempre importante tratar desses quesitos para que possam aprimorar mais em futuras edições.
Sol e sonhos em Copacabana definitivamente não é o tipo de livro para ler de uma só vez, é preciso paciência e contemplação (tal como Jean-Jacques se deparando com as paisagens de Copacabana ou com Verônica) para compreender e analisar todos os detalhes. É fácil mergulhar na história e no ambiente, assim como tentar – nem sempre com sucesso – se colocar no lugar dos personagens. Além de ser um livro que me enriqueceu como leitora, também enriqueceu a literatura brasileira contemporânea e nos instiga a conhecer mais nossa própria história.
Primeiro parágrafo: "Jean-Jacques Chermont Vernier chegou ao Rio de Janeiro em meados de 1900, designado consultor econômico junto à embaixada francesa".
Melhores quotes: "A beleza possui algo de solene, de misteriosamente digno e inescrutável... alguma coisa de... [...] Sim, de incorruptível, de íntegra, de honesta! É isso! A beleza é profundamente honesta! Não se pode admirá-la sem verdadeiramente a sentir! Ela é autêntica, e exige isso de nós! Ela é singela e digna!"."Seriam, gradativamente, mais poderosas e abrangentes as garras do poder econômico, tutelando definitivamente as emoções e o comportamento humano? E, porventura, chegaria um tempo em que esse tirano dominaria as mentes e os corações dos homens, destruindo a capacidade de indignar-se e abolindo o sentir? Ou o espírito triunfaria sobre si mesmo?".
Uau... um livro de época que transcorre aqui?? Que bacana. Fiquei curiosa em ler, pois adoro os costumes e vocabulário de época. Exatamente como tu colocou, é o tipo de leitura enriquecedora justamente por não ser um romance melosinho que conta sempre a mesma historia, tem fatos políticos de conflitos reais. além de ter uma capa linda e o título bem interessante. Valeu a dica.
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