Duzentos e quarenta e dois, 242 – parece apenas mais um número. Mas no dia 27 de janeiro de 2013 (e nos vários tormentosos dias que se seguiram), ele ganhou outro significado. Faz mais de cinco anos desde a tragédia da Boate Kiss em Santa Maria, que teve a capacidade de parar o Brasil e chamar a atenção como o quinto maior desastre do país, o segundo maior em número de vítimas em um incêndio, o maior do Rio Grande do Sul e o terceiro maior em casas noturnas do mundo. Sim, são muitos números. Mas os números nunca indicam a história por trás deles, e é isso que Todo dia a mesma noite se dispõe a fazer.
Baseando-se em depoimentos dos sobreviventes, da equipe de resgate que atuou no acontecimento e dos familiares das vítimas, Daniela Arbex faz uma reconstituição dos eventos ocorridos naquele 27 de janeiro e busca ir além dos números. Ela conta as histórias dos jovens personagens que tiveram suas vidas brutalmente arrancadas – não apenas a deles, mas a de todos que estavam ao seu redor. A dor e a ânsia por justiça se encontram em cada palavra (dita e não dita). Cada uma das vidas ali perdidas tinham suas próprias histórias, seus próprios dramas e sentimentos. Arbex mostra que o país não estava preparado para algo de tamanha magnitude: não havia espaço para os corpos daqueles que morreram nem para os feridos, o que contrasta com a situação da boate naquela noite, que ocupava muito mais do limite suportado – a capacidade do local não passava de 691 pessoas, mas havia aproximadamente 1500 no momento do incêndio.
Porém, Todo dia a mesma noite não traz apenas relatos dos personagens que passaram por essa tragédia. Ele também denuncia e reúne todos os fatos, mostrando que o incêndio na Kiss não foi um simples acidente, e sim uma série de erros e omissões por parte de todos os envolvidos. E quem pagou o maior preço foram aqueles que nada tiveram a ver com tais falhas. Desde que a boate entrou em funcionamento (no ano de 2009) sempre esteve desregularizada em algum aspecto, seja com relação ao Plano de Prevenção e Combate a Incêndio (PPCI) ou com o alvará de localização, levando a conclusão de que, dentro dos termos legais, a casa noturna não deveria estar em funcionamento naquele dia.
Meu primeiro contato com uma obra de Daniela Arbex foi com
Cova 312, a qual tive o prazer de resenhar
aqui no blog, e se tornou
um dos melhores livros de não-ficção que já li. Desde então, tenho acompanhado o trabalho da autora e admirado seu talento para lidar com as
questões humanas de forma humanizada – o que parece óbvio, pois é assim que sempre devem ser tratadas, mas ao observar o ritmo do mercado jornalístico, percebemos que na prática não é isso que ocorre. Como falei no início, números parecem mais importantes na hora de relatar os acontecimentos, além de ser mais prático. Mas o que garante que as obras de Arbex – incluindo
Todo dia a mesma noite – sejam tão especiais, é justamente o olhar e o tratamento que ela dá a cada detalhe que compõe a narrativa. Novamente, Arbex dá um exemplo de jornalismo e mostra que
não é suficiente apenas apurar os fatos, mas também
pôr sentimento no que está sendo escrito.
A
narrativa é
crescente, porém não-linear. Com bastante fôlego, a escrita da autora segue um rumo onde todos os acontecimentos são retratados no momento certo. A cada capítulo, ela nos apresenta uma parte da história, mas não as finaliza ali.
Todas têm um ponto de encontro à medida que o livro está chegando ao seu desfecho. Porém, esse desfecho ainda não é o fim da história e isso fica muito claro, ou seja, se daqui a uns anos outro livro seja escrito a respeito do incêndio da boate Kiss, talvez o rumo da narração dos fatos seja diferente. Claro que algumas coisas jamais podem mudar, mas
os processos ainda seguem e
os pais das vítimas continuam lutando por justiça ao lado de todo o Brasil.
"O trabalho dos legistas junto às vítimas seguiu silencioso durante quase todo o período, mas, de tempos em tempos, podiam-se ouvir lamentos que quebravam a dureza da função. Nenhum mecanismo de proteção os isentou de chorar por Santa Maria e por tudo o que a soma de vítimas naquele ginásio representava: mais de 9 mil anos potenciais de vida perdidos, considerando a expectativa dos brasileiros de 75 anos. Não havia como ficar imune ao sofrimento provocado pela tragédia. Naquele domingo, a cidade inteira tinha seu coração preso dentro de um ginásio" (p. 104-105).
A escrita é sucinta e objetiva, como toda reportagem deve ser. Porém, também segue a linha do jornalismo literário, em que encontrar o coração do leitor para tocá-lo e sensibilizá-lo é um dos principais objetivos. Todos os relatos tem o maior número possível de detalhes, é possível perceber toda essa dedicação e cuidado ao tratar dos casos. Falas e descrições foram reconstituídas para passar mais realismo e credibilidade, além de prender o leitor. A autora também tem como foco os objetos e o valor que cada um deles tinha para a vida das vítimas e de suas famílias – como o jovem Augusto, filho adotivo que levou a identidade por recomendação de sua mãe para que não fosse confundido com outra pessoa numa abordagem da polícia, e algumas horas depois essa mesma identidade fez com que seu corpo fosse reconhecido; ou como o celular da jovem que tinha 134 ligações não atendidas da mãe; ou ainda como Lucas Dias, que tinha um orgulho exacerbado de seu estado gaúcho, costumava usar roupas típicas da região, e acabou sendo enterrado com elas, além de ter a bandeira do Rio Grande do Sul estendida sobre seu caixão; ou talvez a última cartinha que Vitória escreveu para o Papai Noel, em 2012, um mês antes de sua morte, onde usou seu humor para pedir um camaro amarelo.
Todos esses detalhes fazem com que o leitor envolva-se profundamente nas histórias, e isso é o mais devastador. Compartilhei um pouco da dor das famílias e dos dramas de cada uma das vítimas retratadas. Isso fez com que me perguntasse o tempo todo o que teria acontecido se todos ainda estivessem vivos, se aquele sinalizador não tivesse sido acendido pelo vocalista da banda Gurizada Fandangueira (será que era só uma questão de tempo, como se fosse preciso uma tragédia ocorrer para chamar a atenção das autoridades?), se os donos da Kiss tivessem sido mais responsáveis e cumprido com todas as normas, se a fiscalização no Brasil fosse mais eficaz... São diversas perguntas que ficarão para sempre sem respostas.
Porém, o trabalho de Arbex não parou por aí. Ela também mostra
como estão hoje as famílias e amigos das vítimas, como estão tentando lidar com a morte delas. Ninguém saiu ileso de sofrer com as lembranças da tragédia, inclusive os profissionais que trabalharam em torno do caso. Muitos tiveram que recorrer a
tratamentos psicológicos e psiquiátricos para tentar retomar suas vidas da melhor forma possível. Outros ainda usam o luto como luta – para parafrasear o lema
"Do luto à luta" usado para fortalecer as esperanças daqueles que ainda esperam a justiça funcionar e punir os processados pelo caso. Mais de cinco anos se passaram, mas
Todo dia a mesma noite é a maior prova de que
todo dia é 27 de janeiro de 2013 para aqueles que ainda sofrem com as terríveis perdas daquela madrugada.
"Para quem perdeu um pedaço de si na Kiss, todo dia é 27. É como se o tempo tivesse congelado em janeiro de 2013, em um último aceno, na lembrança das últimas palavras trocadas com os entes queridos que se foram, de frases que soarão sempre como uma despedida velada" (p. 185).
O livro é uma
verdadeira inspiração para qualquer aspirante a jornalismo, não só por tratar o assunto com a sensibilidade que merece – inclusive, se tornando um espaço onde, pela primeira vez, os personagens apresentados resolveram falar, abrindo seus sentimentos e remexendo a antiga ferida, ainda aberta –, mas também por ter um
clima de crítica. O caso da Kiss tem potencial para ser um dos mais vergonhosos para o Brasil. O capítulo que retrata o momento em que os políticos entraram no ginásio (onde os corpos dos jovens foram dispostos) para ver os mortos, antes mesmo de os próprios familiares terem acesso ao local, foi chocante. Além disso, ainda houveram meros curiosos que sacaram seus celulares para fotografar e filmar a tragédia, sem se preocupar com questões éticas e morais.
A própria omissão em resolver o caso nos tribunais tem sido mais uma vergonha que nossa justiça carrega. Todo dia a mesma noite foca também na
repercussão midiática que o caso teve, inclusive reproduzindo a matéria da
Folha de S. Paulo, que deu um furo quando revelou que o gás aspirado pelos jovens, a causa da morte da maioria deles, foi o periculoso
cianeto,
o mesmo gás usado nos campos de concentração nazistas.
É um livro relativamente curto, com apenas 244 páginas, 13,5 cm de largura e 21 de comprimento. É possível finalizá-lo em poucos dias, assim como eu fiz – além da escrita fluida, é quase impossível largá-lo depois de estar envolvido com as histórias narradas. Mas lê-lo rápido demais pode trazer consequências: Todo dia a mesma noite é um livro pesado, pois a tragédia se encontra em cada palavra e paira de forma iminente durante todo o tempo em que se está com o livro nas mãos. Ele também traz uma revisão impecável, capa e diagramação simples. Sem dúvidas a parceria com a Intrínseca deu novos ares à Arbex. O repórter especial da TV Globo e ex-estudante da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), como boa parte das vítimas do incêndio, Marcelo Canellas, escreveu o prefácio que se encarrega de fazer uma bela apresentação acerca da essência da obra. A fotógrafa Marizilda Cruppe foi responsável pelas fotos de alguns dos personagens ouvidos (anexadas no final do livro), conseguindo captar "a alma humana" de cada um – nas palavras da própria Arbex.
Apesar de ter escrito tanto sobre o livro nesses longos parágrafos, ainda não sei como descrever a experiência de lê-lo. Não importa as palavras que use, nunca chegarei perto de explicar o impacto que ele teve em mim, por isso só posso finalizar a resenha recomendando a leitura de Todo dia a mesma noite. É um livro que trabalha diretamente com a memória, mas não apenas por retratar as lembranças dos personagens que fazem parte da narrativa, mas com nossas memórias. Os brasileiros pararam durante os primeiros meses de 2013 para observar a tragédia da boate Kiss e depois seguiram em frente, como sempre fazem. Porém, mesmo seguindo adiante, o conformismo não pode se alastrar. Além de ser um livro que fala sobre sofrimento, luto, saudade e solidariedade, ele também fala de justiça. Não podemos esquecer dos 242 jovens que perderam a vida naquela noite. Não podemos esquecer que eles não são apenas um número.
Primeiro parágrafo: "Kiss. O monossílabo em inglês, cujo som pronunciado nos entra pelo ouvido como o estalar de uma bitoca, agora trespassa suia acepção estrita. Seu significado literal se esvaziou de sentido. Tragédias são episódios tão avassaladoramente desconstrutivos da rotina esperada, tão perturbadoramente desarrumadores da ordem natural, tão violentamente instauradores da ruína e do caos, que nem mesmo a semântica se mantém de pé. Desde a madrugada de 27 de janeiro de 2013, a bela palavra kiss evoca dor, perplexidade, ganância, omissão, injustiça e tantos outros sentimentos e percepções inflados pela falta e pelo abandono".
Melhores quotes: "Depois da Kiss, ninguém mais seria o mesmo. Ninguém".
"Embora estivesse sem o filho havia poucas horas, a saudade que sentia não cabia em lugar nenhum, muito menos dentro dela".
"Para as vítimas indiretas do incêndio na Kiss, resistir não é uma escolha, mas um imperativo de sobrevivência. Resistir ao cansaço da espera por alguém que não voltará, ao silêncio imposto pela ausência, à dor que teima em ficar, por mais que queira livrar-se dela. Resistir não só à perda, mas ao esquecimento, que busca sepultar os erros que contribuíram para que o dia 27 de janeiro de 2013 não terminasse para mais de duzentas pessoas. A construção da memória do pior desastre provocado pelo homem na história recente do Brasil é necessária. Só assim o país poderá lidar com as causas e consequências de uma tragédia que envergonha pela matança e impunidade".
Uau que resenha!! Embora longos, teus comentários foram sensíveis mostrando a profundidade e peso dessa historia. Sou do Sul e essa tragédia teve uma repercussão muito forte não só aqui, tamanha infelicidade dos fatos. Quero ler, com certeza, mas em outro momento, sei que vai ser muito impactante e sabendo que foi uma historia real e tao próxima, torna pior ainda. Graças a Deus eu não conhecia ninguém mas tudo que se soube depois de outros jovens que estava lá e não morreram naquela noite e sim dias depois em outras tragedias, mostra que realmente temos um proposito aqui, enfim...
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