Livro: O Livro do Juízo Final
Título original: Doomsday book
Autor(a): Connie Willis 
Editora: Suma de Letras 
Páginas: 573
ISBN: 978-85-5651-038-9
Sinopse: Em meados do século XXI, a jovem estudante Krivin Engle se prepara para viajar no tempo. Ela pretende fazer um estudo de campo sobre uma das épocas mais sombrias da história da humanidade: a Idade Média. Em um primeiro momento, tudo parece ter corrido bem com a empreitada, e ela finalmente está no século XIV. O que Kivrin não sabe é que o técnico responsável pelo seu salto temporal de volta para 2054 está terrivelmente doente. Seu retorno pode estar comprometido, e isso pode afetar todos os habitantes do Reino Unido.




Constance Elaine Trimmer Willis, mais conhecida como Connie Willis, é uma escritora estadunidense de ficção científica – uma das mais prestigiadas do gênero entre os anos 1980 e 1990. Em 1983 ganhou dois Nebula Awards, um pela novela Fire Watch — que também ganhou um Hugo Awards meses mais tarde — e outro pelo conto A letter from the clearys. Em 1993, O livro do juízo final ganhou o Nebula e o Hugo. Todos esses prêmios fazem de Willis uma das escritoras mais homenageadas da ficção científica e a única pessoa a ser premiada com dois Nebulas e Hugos no mesmo ano. Atualmente reside com seu marido em Greeley, Colorado.

    Reino Unido, Inglaterra, Oxford 2054. Este é o cenário inicial da premiada história de Willis. Viagens no tempo já são uma realidade nessa época e a estudante da Universidade de Balliol, Kivrin Engle, que tem ânsias de um dia ser uma grande historiadora, alimenta o sonho de viajar para a Idade Média. Sua curiosidade a respeito desse tempo remoto é imenso e ela deseja descobrir se os dados que todos acreditam serem verdadeiros realmente o são. O setor responsável por esse tipo de viagem é Medieval, e a responsabilidade da Universidade está sob as ordens de Gilchrist, um homem que não mede escrúpulos para conseguir impressionar seu superior e mostrar que é tão capaz de assumir a diretoria quanto ele. 
   Porém, James Dunworthy, o tutor de Kivrin, fica muito preocupado com toda a situação. A viagem foi marcada às pressas, durante a gestão de Gilchrist, que não fez os testes adequados para uma viagem tão remota e perigosa. O ano em que Kivrin saltará é 1320, 28 anos antes de a Peste Negra tomar conta da Inglaterra. Mesmo assim, Dunworthy fica apreensivo, pois Kivrin é apenas uma estudante e pode não estar preparada para o que irá encontrar no passado (em uma época em que as mulheres eram constantemente abusadas e acusadas de bruxaria). Mesmo assim, ele não consegue persuadir Kivrin a esperar um pouco mais. Ao lado de sua amiga, a médica Mary — que garante que tomou todas as precauções para que Kivrin não fosse abatida por alguma doença do século XIV —, Dunworthy vê a menina, que considera quase como uma filha, desaparecer na rede que a levou até a Idade Média.
    A partir daí a história se divide em dois cenários: o século XIV e o XXI. Kivrin conseguiu realizar seu salto e finalmente está na Idade Média. Porém, perdida e confusa no meio da floresta, acaba adoecendo. Febre, dores de cabeça e cansaço a abatem. Até que enfim é resgatada e levada para uma casa senhorial onde não consegue compreender nada do que dizem e muito menos o que estão fazendo com ela. Já Dunworthy não consegue descansar enquanto não obtiver o fix de Kivrin, ou seja, o local, o dia e a hora exatas em que ela saltou. 
    O responsável por fazer a leitura do fix é Badri Chaudhuri, um dos técnicos mais conceituados do Balliol. Mas assim que consegue obter o fix, apresenta estranhos sintomas de uma doença que o deixa imediatamente incapaz de dizer ou fazer qualquer coisa coerente. Logo Badri é levado a um hospital e, sob os cuidados de Mary, descobre que a causa da sua doença é um vírus muito poderoso e o pior de tudo: não há registros de algo do tipo em outro lugar do mundo. Em pouco tempo, outros pacientes com os mesmos sintomas começam a aparecer e a cidade de Oxford entra em quarentena. Dunworthy fica desesperado, pois não sabe a localização exata de Kivrin e nem se a garota sequer conseguirá voltar.

    O que despertou minha curiosidade sobre O livro do juízo final foi justamente o gênero ficção científica, que é uma grande paixão minha, especialmente quando envolve viagens no tempo — algo que acredito que, em alguns anos, o ser humano dominará. Connie Willis é uma das autoras mais reconhecidas desse meio e ler logo de cara seu livro mais famoso e o primeiro da escritora a ser publicado no Brasil foi uma honra e tanto. Não foi exatamente o que eu esperava, mas com certeza me surpreendeu e me mostrou um outro lado dos romances que envolvem sci-fi.
    A narrativa é em terceira pessoa, a não ser pelos capítulos em que Kivrin detalha as coisas que vivencia no século XIV como forma de registro histórico de sua passagem por aquela época. Em um dispositivo instalado na mão, ela consegue gravar relatórios sobre seu dia-a-dia enquanto finge que está rezando com as mãos unidas próximas à boca. Quando ela assume a narrativa, a maior diferença é que a escrita assume o tom de relatório e a visão de Kivrin se torna mais clara para o leitor.
   A escrita de Willis é extremamente descritiva — porém não com detalhes do ambiente e dos personagens, e sim, com suas ações. Ela se demora em cada atitude que cada personagem toma, o que torna o desenrolar do enredo bastante cansativo em alguns momentos, como se a história andasse a passos lentos. O livro é dividido em três partes, como três livros. O primeiro foca nos primeiros passos de Kivrin na Idade Média e na saga de preocupações de Dunworthy. Já o segundo, as coisas se agravam com Badri, e o desespero, tanto num século como noutro, começam a se instalar quando eles avançam nas descobertas. Já o terceiro e último consegue captar a essência geral do livro e passar a mensagem central a respeito de amor e doação ao próximo — tudo isso cercado por detalhes científicos e ficcionais.

"Como Deus teria sido capaz de mandar Seu único filho, Seu precioso filho, para um perigo tão grande? A resposta é amor. Amor!
— Ou incompetência — murmurou Dunworthy. [...]
E depois que Ele deixou o filho ir, Ele se preocupou com isso em cada minuto, pensou Dunworthy. Imagino se ele terá tentado cancelar tudo" (p. 220).

    Willis passou cinco anos trabalhando nessa obra. Podemos perceber o quanto de pesquisa (em conjunto com grandes doses de imaginação) a autora precisou fazer para compôr esse conjunto de ideias. Muitas referências são utilizadas, a começar pelo próprio título. Kivrin chama seus relatórios de "Livro do juízo final" em homenagem a um registro homônimo, como um censo que contabilizou terras e seus senhores, datado de 1086 e executado por Guilherme I da Inglaterra. Os cristãos da época acreditavam que quando Jesus voltasse, ele contabilizaria os feitos de cada pessoa, assim como o censo fez com as terras — por isso o nome. Não apenas esse detalhe, mas muitas outras referências à realidade que se vê nos livros de história acerca da era medieval (como a função da Igreja Católica, leis e julgamentos, o funcionamento de uma casa senhorial e de um vilarejo, etc.) são minuciosamente trabalhados ao longo do livro. E por falar em Igreja, é possível observar uma forte presença da religiosidade, não apenas no século XIV como no XXI. Além disso, o debate sobre a presença de Deus na Terra é trabalhada em todas as etapas.
    Por ser uma trama que fala sobre o ano de 2054 escrita no final da década de 1980 e início dos anos 1990, O livro do juízo final parece, aos nossos olhos contemporâneos, muito antigo. Aparelhos celulares, laptops, tablets, entre outros dispositivos tecnológicos móveis, não são uma realidade na trama de Willis. Para nós, chegar ao ano de 2054 sem esse tipo de tecnologia parece inacreditável, mas é muito interessante ver sob a ótica de uma pessoa que viveu naquela época e não podia imaginar avanços simples como smartphones, mas conseguia deslumbrar viagens no tempo e seus detalhes técnicos com muita facilidade. Inclusive, uma das coisas que mais me chocou foi a dependência que os personagens tinham de seus telefones fixos — que em 2054 já exibiam a imagem de quem estava do outro lado da linha, mas não conseguia se desprender do fio.
    Os personagens conquistam facilmente. Kivrin, a protagonista — que só começa a se revelar como tal na segunda parte —, é o melhor tipo de mocinha: amável nos momentos certos, assim como esperta e corajosa, parecendo sempre pronta para enfrentar os maiores perigos (embora nem sempre esteja). Por muitos momentos fiquei me perguntando por que ela queria tanto estar na Idade Média, afinal, é uma época muito nociva — especialmente para mulheres. Mas mesmo passando por dificuldades, o encantamento de Kivrin em estar de fato no século XIV, realizando um sonho, é passado com muita realidade. Em certos pontos, dá até para entender o lado dela. Acima de tudo, Kivrin é sensível e demonstra o oposto do desprendimento que muitos dos cientistas da história têm — e nisso percebe-se que ela é tão humana quanto seu tutor. Ela está sempre pronta a ajudar e se importa de verdade com todos a sua volta, chegando a criar laços com os habitantes do vilarejo medieval em que se instala.
    Os secundários também são bem construídos. Dunworthy parece até assumir o protagonismo ao lado de Kivrin. Sua preocupação torna tensos todos os capítulos em que ele é o foco, fazendo com que o leitor compartilhe seus pensamentos e medos sobre Kivrin e sobre os problemas que desencadearam a doença de Badri. Um dos melhores personagens é, sem dúvida, Colin, o sobrinho-neto de Mary, que fica sob os cuidados de Dunworthy enquanto sua tia-avó trabalha no hospital. Apesar de pequeno, surpreende por ser tão independente e ter controle sobre as situações inacreditáveis em que se mete. Além disso, seus bordões são impagáveis — uma criança usar termos como "absolutamente necrótico", "cadavérico" e "apocalíptico", é no mínimo inusitado. E Agnes, a menininha que se torna a companheira de Kivrin no século XIV — o equivalente ao que Colin é para Dunworthy em 2054 — é outra prova que a inserção de personagens infantis nessa história foi certeira, pois seu gênio forte supera o de todos os outros.

"As lanternas lançavam seus raios nas facetas cristalinas dos flocos de neve, fazendo-os cintilar como joias, mas foram as estrelas que fizeram Kivrin prender a respiração, centenas de estrelas, milhares de estrelas, todas cintilando como diamantes do ar gelado. 'Está brilhando', disse Agnes, e Kivrin não entendeu se ela estava falando da neve ou do céu" (p. 315).

    Uma das coisas que me incomodou muito, além da narrativa arrastada, foi a falta de explicação de alguns elementos. O livro é futurista, então Willis criou seu próprio universo pondo nele várias coisas que (ainda) não existem. Ela usa termos como contemps, temps, vids, entre outros. Só é possível entendê-los graças ao contexto, mas não sabemos muito bem o que são nem para quê servem. Até mesmo o fix, uma parte importante da história, demorou a ser explicado. Entendo a naturalização do uso desses termos na narrativa, pois Willis com certeza quis criar uma atmosfera familiar. Porém, é difícil se envolver com a trama quando ocorre esses ruídos de interpretação, o que pode deixar alguns leitores confusos.
   Por outro lado, Willis é muito cautelosa com a construção de seus cenários. Ela relata momentos históricos — alguns inventados por ela — com muita clareza. Oxford está no meio de uma epidemia iniciada por Badri e a forma como a autora narra todos os procedimentos tomados para que a cidade entre em estado de quarentena, além de todas as precauções — alojamentos para os doentes, o papel da Universidade em meio à uma crise, conscientização, protestos, o clima de desconfiança, etc. —, faz com que o leitor sinta a veracidade do que está acontecendo no enredo. A impressão que passa é que caso algo do tipo aconteça numa cidade de classe média da Inglaterra em 2054, os procedimentos serão exatamente aqueles.
    A primeira edição brasileira deste livro está fantástica, ou seja, abriu com chave de ouro o vasto universo de Connie Willis por aqui — além do fato de que é sua obra mais conhecida, e que, merecidamente, chegou em terras brasileiras. O que dá charme ao livro é sua capa dura e os tons de cinza, amarelo, preto e branco. Ele tem a sobriedade necessária para um clássico, mas ao mesmo tempo é atraente como um dos contemporâneos. Não encontrei erros de revisão e tradução. Talvez fossem necessárias notas do tradutor Braulio Tavares (escritor, letrista, compositor e pesquisador de literatura fantástica) em determinados momentos, explicando contextos e localizações. Mas, no geral, foi um trabalho caprichado.
    Connie Willis nos insere em seu mundo fictício com toques de realidade de forma espetacular. Os detalhes e pistas deixados ao longo da leitura se amarram no desfecho. A autora assume sua história como uma mãe assume um filho assim que o recebe em seu ventre. Me arrisco a afirmar que o grande brilho dessa obra não foi a história em si, sua narrativa, seu cenário, ou qualquer um desses elementos. Quem brilhou mesmo foi a autora. Willis, sem dúvidas, merece ser reconhecida como uma das maiores escritoras de ficção científica. Porém, O livro do juízo final transcende o gênero pelo qual é classificado. Ele é, acima de tudo, um livro que fala sobre amor, respeito e confiança. E é por isso que me marcou e ainda será capaz de marcar muito amantes de ficção — científica ou não.

Primeiro parágrafo: "O sr. Dunworthy abriu a porta do laboratório e seus óculos ficaram embaçados no mesmo instante".
Melhores quotes: "A gente nunca se acostuma com a ideia de que não pode fazer nada".
"É apenas uma época complicada. Uma época terrível, mas nem todo mundo vai morrer. Virão tempos maravilhosos. Haverá novos remédios, e as pessoas não morrerão mais da peste nem de varíola nem de pneumonia. Todo mundo terá comida suficiente, e as casas serão aquecidas mesmo no inverno — Ela pensou em Oxford decorada para o Natal, as ruas e as lojas todas iluminadas. — Haverá luzes por toda parte, e sinos que não precisam ser tocados por ninguém".



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