Livro: A vida dos elfos
Título original: La vi des elfes
Autor (a): Muriel Barbery
Editora: Companhia das Letras
Páginas: 264
ISNB: 978-85-359-2647-7
Sinopse: Maria e Clara são jovens órfãs unidas por dons secretos. A chegada de Maria a uma granja na Borgonha traz prosperidade à terra, o que leva todos a acreditarem que a menina conversa com a natureza. Enquanto isso, Clara cresce numa aldeia perdida nos Abruzos, no sul da Itália, aprende italiano na "velocidade do milagre" e, depois de se revelar um prodígio no piano, é enviada a Roma para desenvolver sua veia musical. As duas garotas, cada uma à sua maneira, se comunicam com um mundo misterioso que garante à vida dos homens sua profundidade e beleza, mas ao mesmo tempo oferece uma ameaça grave contra nossa espécie. As sombras da guerra e do mal avançam, e só Maria e Clara poderão combatê-las, reinstaurando a paz. Mas elas ainda não compreendem os muitos enigmas que as envolvem. De onde vêm? O que as conecta?

     Muriel Burbery nasceu na França, em 1969. Estreou na literatura com o romance A morte do gourmet, traduzido em doze línguas. Seu segundo livro, A elegância do ouriço, foi uma sensação mundial, com mais de 6 milhões de exemplares vendidos. Os dois publicados aqui no Brasil pela editora Companhia das letras. E haverá um segundo livro que dará continuidade a A vida dos elfos.

    Duas meninas, que ninguém sabe de onde vieram, aparecem, simultaneamente, em dois lugares diferentes, onde cumprirão diferentes missões, mas com uma mesma finalidade. Maria surge diante de uma granja no interior da Espanha, onde moram várias pessoas, que formam uma grande família, com laços muito mais fortes que os de sangue. E lá Maria é acolhida como um deles, ganhando um pai, uma mãe, avós e diversos amigos. Ela cresce num ambiente bucólico, afável, e especial, onde pode estar em constante contato com a natureza, levando para a região muita prosperidade nas colheitas, na caça, e em todas as outras atividades que os moradores dali praticam para sobreviverem.
    Já Clara foi deixada na porta de uma igrejinha interiorana na Itália. Crescendo na companhia de um padre e de sua empregada analfabeta que contava belas histórias, Clara se tornou alguém sensível a tudo, mas muito tímida e reservada. Amava ver as montanhas e as árvores ao redor da aldeia onde foi criada. Até que um dia, o irmão do padre, Alessandro, apareceu na igreja trazendo consigo um piano. E por esse piano, Clara se apaixonou. Sem precisar que ninguém lhe ensinasse a tocá-lo, se mostrou mais que um simples virtuose, tocando belas melodias como se tivesse anos de prática. Isso fez com que fosse levada à Roma por um amigo de Alessandro, Pietro, e lá ela conheceu pessoas que a fizeram conhecer a verdade sobre suas origens, e que se mostraram fieis amigos.

  Foi minha primeira experiência com Muriel Burbery, e apesar de estar habituada à literatura francesa de ficção, a escrita de Muriel me surpreendeu. O jornal Le figaro chegou a compará-la com J.K Rowling e Jules Verne. Após ler A vida dos elfos, sou obrigada a discordar. Nunca li nada parecido para servir como comparativo. É um estilo clássico, mas ao mesmo tempo, dotado de contemporaneidade. A fantasia contida na obra é instigante, mas não a vi como foco principal — como pode ser mal interpretado na sinopse —, por isso, para os amantes do fantástico, pode ser uma decepção.
    O estilo de narrar de Burbery pode ser comparado com o arcaico. Cada termo usado pela autora me remetia aos estudos de arcadismo – o bucolismo (espécie de poesia pastoral, que descreve os costumes rurais e exalta as belezas da vida campestre), o fugere urbem (fugir da urbanidade, pois não é um bom lugar para a reflexão e para levar uma vida tranquila), e aurea mediocritas (o equilíbrio espiritual em meio à natureza). Cheia de floreios com toques essencialmente poéticos, a narrativa em terceira pessoa é leve e de uma beleza incomum.

"Era inconcebível que um mundo tão suntuoso pudesse conviver com tanta dilaceração e dor" (pág.111).
     A exaltação da natureza e do homem do campo foi o que mais me chamou a atenção. Não é comum encontrarmos tais elementos em obras contemporâneas, principalmente quando se envolve fantasia. A ligação do homem-natural com o ambiente-natural foi algo gratificante de se observar na obra. Atualmente, não vemos mais essa ligação; há uma divisão óbvia entre o homem e a natureza, como se não fizéssemos parte dela, mas ao contrário, nós fazemos, e é isso que a autora procura deixar bem claro. Numa época em que os homens rurais são deixados de lado, até mesmo pelas próprias ações públicas, nesta obra eles são vistos como verdadeiros heróis, apesar de sua simplicidade e reduzidos conhecimentos didáticos.
    E não apenas a natureza recebeu destaques. A "magia da arte" também teve seu espaço através de Clara, um prodígio no piano. Em Roma, ela se descobriu entre vários artistas, de diversas áreas, inclusive Alessandro, que pintava quadros. Por meio das palavras, Muriel conseguiu descrever as maravilhas das sensações que é ouvir uma bela melodia ou observar uma pintura. Assim ficou fácil dar asas à imaginação. Foi inspirador ver elementos assim como centro de uma história, pois são coisas esquecidas e vistas como banais no mundo de rotinas corridas e de pouca apreciação em que vivemos.
    Com uma ótima construção dos personagens, abordando suas respectivas histórias e mostrando sua relação com as protagonistas, a obra aproveita para descrever o ambiente onde eles vivem, mostrando também como levam uma vida considerada pacata, e como enxergam as coisas sobrenaturais que ocorrem em volta de Clara e Maria. Os personagens se dividem entre humanos e elfos, mas isso não diminui a ligação deles com cada mundo, nem sua importância no enredo. Mostra como todos são privilegiados por estarem na vida das duas meninas.
    O interessante é perceber a evolução de cada personagem, principalmente aqueles que fazem parte da história de Maria, pois deixam de se enxergarem como pessoas simples, que não têm capacidades para ir muito longe, e, no desfecho, acabam por se mostrarem muito mais que isso. Todos iniciam um novo ciclo ao final. Mas com relação às protagonistas, apesar de suas descobertas e ascensões, não houve muita distinção entre elas, era como se fossem uma só — o que, mesmo com a forte conexão e semelhanças que tinham, seus pontos de oposição poderiam ser mais trabalhados.


     A única coisa que realmente atrapalhou um pouco o enredo foi justamente a característica que mais me impressionou: a escrita, porque a narrativa foi tão focada no desenvolvimento dela que acabou deixando a história em segundo plano, fazendo com que a fantasia não sei adequasse mais ao que estava sendo narrado a partir de determinado momento do livro. Além do mais, a época não ficou bem clara. Pelo que se pode perceber, o espaço-tempo estava entre as duas Grandes Guerras Mundiais, o que deixou um pouco a desejar quanto à formação de um cenário específico. Mas não costumo ver atemporalidade como um problema (dependendo de como tudo se desenrola). Talvez no próximo livro haja uma ideia melhor para responder a essas questões.


    A capa ficou com uma bela estética; mesmo simples, conseguiu absorver toda a "aura" do livro, com uma cor platinada que varia do dourado ao bronze, o que rendeu um efeito visual muito bonito e elegante. Diagramação e revisão impecáveis, além da útil preocupação da autora com notas de rodapé explicativas.
    A vida dos elfos não determina um público-alvo específico. Sua escrita pode remeter ao clássico, então para quem se agrada desse estilo e não se enfadonha facilmente, é uma ótima recomendação. A narrativa é lenta e traz consigo uma beleza que seve ser deliciada aos poucos — uma mesma frase lida muitas e muitas vezes (como eu fiz) pode ser necessário, para que o leitor sinta o "espírito da coisa". Uma leitura inovadora, que vale a pena ser apreciada.

Primeiro parágrafo do livros: "A menina passava nos galhos o essencial de suas horas de lazer. Quando não sabiam onde encontrá-la, iam até as árvores, primeiro até a grande faia que dominava o alpendre norte e onde ela gostava de sonhar observando o movimento na granja, depois até a velha tília do jardim do padre, ao lado da muretinha de pedras, e finalmente, e em geral era no inverno, até os carvalhos do vale oeste do campo vizinho, uma ondulação do terreno plantada com três espécimes como não havia mais bonitos naquela terra. A aldeia feita de estudo, refeições e missas, e de vez em quando convidava uns amiguinhos que se deslumbravam com esplanadas leves que ela abrira ali em cima e onde passavam dias maravilhosos conversando e rindo.
Melhor quote: "No fundo, o que é curar, se não fazer a paz? E o que é viver, se não for para amar?".


 


Um Comentário

  1. Achei interessandte quando você diz "A única coisa que realmente atrapalhou um pouco o enredo foi justamente a característica que mais me impressionou: a escrita, porque a narrativa foi tão focada no desenvolvimento dela que acabou deixando a história em segundo plano, fazendo com que a fantasia não sei adequasse mais ao que estava sendo narrado a partir de determinado momento do livro". Acho que tem momentos muito introspectivos e poéticos, mas o enredo parece submerso, precisa ser deduzido porque não está escrito. Não consegui acessar a obra....vou ter que ler de novo em um outro momento.

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